segunda-feira, 3 de novembro de 2025

caminho

 



a mulher calcorreava as ruas com passo apressado. chovia. o casaco fino que trazia não tinha sido feito para a abrigar da chuva. as calças de malha, supostamente brancas, cresciam-lhe por baixo das sapatilhas, com o peso da água que pisava. pisava chão, pisava água, pisava as calças. mas não se detinha. talvez tivesse horas para chegar. no ombro, inclinado, levava a bolsa e na mão o telemóvel de onde só desviava os olhos para atravessar uma rua. seguia o caminho pelo gps. estaria perdida, ou estrangeira naquela terra sem alma feita de prédios, alcatrão e trânsito. muito trânsito. quem a visse, julgá-la-ia alienada, completamente alheia ao que a rodeava, com o fito único num qualquer número de porta. ainda ouviu alguém dizer-lhe de passagem 'está a chover...', como se não soubesse. a chuva que caía subia-lhe pelas pernas, e descia pelos cabelos. o que a conduzia, só podia ser maior do que ela, do que o tempo, do que a orientação terrena dos seus passos, do que o seu desiquilíbrio.

talvez seja assim que caminham os loucos, conduzidos por algo maior do que eles.






domingo, 2 de novembro de 2025

domingo

 



cheguei cansada.

contrariei a minha vontade. não me aninhei. não parei. não mergulhei no meu livro, aquele em que a minha atenção resiste e salta linhas. não me silenciei.

contrariei o meu saturno retrógrado em aquário na casa 7... digo eu à professora que ontem me dizia que eu me sentia desconfortável, e até fugia, de ambientes com muitas pessoas, devido a essa configuração astrológica.

mas mesmo assim valeu a pena. fui-me superando minuto a minuto, por amor àquelas duas mulheres mais velhas.

pois é o amor que nos faz andar, que melhor guia os nossos passos, e nos conforta no nosso desconforto.





sexta-feira, 31 de outubro de 2025

artificial

 




depois de ter passado a tarde toda a alinhavar o projecto para dar seguimento ao curso que frequentei e que há alguns anos desejava fazer, resolvi perguntar à IA como realizar o dito. toda a tarde consultei apontamentos, manuais, segui links e anotei resumos e pressupostos. 

em alguns segundos, a querida artificial apresentou-me o projecto, impecável, no formato que eu quiser, e em audio, se preferir.

ora bolas. 





quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Ancestrais

 






olho com atenção para a lápide, depois de ter pousado o vaso de flores amarelas. ali inscritos estão os nomes do tio, primo, avós, bisavós, trisavós, tetravós e uma amiga antiga que não tinha onde descansar os ossos. a maior parte dos apelidos já estão diluídos no tempo.

trago essa imagem comigo, e uma veneração tardia por aqueles que me correm nas veias.

neste fim-de-semana passado, o professor contava a história de um ancião, personagem de um filme do qual não me lembro o nome, que, ao lhe perguntarem quem era, respondia 'sou..., filho de..., neto de... bisneto de..., trisneto de... ' e por aí fora.

sabendo que os meus ancestrais não se encontram ali, naquela profundidade da terra coberta por uma roseira, trago comigo os nomes que representam aqueles dos quais também sou feita. e agradeço-lhes a vida.




terça-feira, 28 de outubro de 2025

Caminho

 





Abençoo-te todos os dias quando passo por baixo da tua janela. A luz que vejo da rua mostra-me que estás vivo, e bem

Abençoo o meu amor bonito

Abençoo o caminho que me levou a ti

Abençoo o caminho que me afastou de ti

Abençoo e solto

Abençoo e passo

Abençoo e agradeço 

Abençoo e sigo











terça-feira, 21 de outubro de 2025

Da horta

 



Conto-lhe forasteiro que da horta, se quisesse colher, colheria ratazanas grandes como coelhos. Já hortaliça... vou trazendo couve galega (essa couve milagrosa) e ervas aromáticas que me presenteiam com tisanas de elevar a alma a estados de contemplação perfumados. Ela é cidreira, hortelã, erva príncipe, limonete, sálvia, lavanda, alecrim e arruda... se bem que arruda é dedicada a banhos de descarrego.

Mas forasteiro, a surpresa é que este ano o boldo já floriu pela segunda vez e a curcuma também se envaideceu florida de branco e lilás. Duas bênçãos, forasteiro, que aqui a que lhe escreve aceita de coração cheio.







segunda-feira, 20 de outubro de 2025

desenho

 



o rapaz que estoicamente continua a tentar ensinar-me a arte do desenho, diz-me que exagere, que ao desenhar a figura humana exagere nas curvas, nas formas, nas dimensões

- só exagerando, mais tarde ficarás à vontade com a normalidade. solta o traço, não te preocupes em te enganares

quando mostro resistência, volto para os cubos. desenho infinitamente cubos em todas posições, com os mais diversos pontos de fuga. perspectiva até aos cabelos... cubos e cilindros. garante-me que tudo são formas geométricas. a mim parece-me básico, estéril,  frio, e vou desenhando sorrisos, corações, flores, olhares indignados nas ditas formas, numa tentativa de dar vida ao inerte, como nos dias, quando as forças não me traem. 





domingo, 19 de outubro de 2025

domingo




O verde que se alarga em frente à varanda da sala que me acolhe começa a mudar de cor. Já terá começado há algum tempo, mas eu, e a minha criatividade ausente, apenas vemos com o par de olhos que o meu corpo nos permite.

É outono, um outono com tudo. A chuva, as cores quentes e o cheiro a castanhas assadas, o entorpecimento no corpo convidando ao recolhimento, o silêncio que apenas as badaladas da igreja rompe.

Páro e tento que o pensamento páre também. Saboreio o lento passar do tempo.







sexta-feira, 27 de junho de 2025

Amélia

 





Amélia bamboleia-se à minha frente e as outras imitam-na. Talvez o burburinho que ouço, entrelaçando o chilrear das aves neste entardecer, seja os cochichos delas dizendo de mim - olha ela, a que nos nomeia, a que fala connosco e nos ouve. . E baloiçam os ramos ao sabor da nortada mostrando-me todas tonalidades de verde e de sabedoria.

Amélia, a mais alta e mais esguia, abre, diria eu que propositadamente, a copa, e acolhe-me no seu regaço. 

Mestre árvore, em ti repouso, em ti me fundo, em ti procuro as raízes e o céu.

E ela olha-me com as folhas a transbordarem amorosidade.










domingo, 13 de abril de 2025

olha

 



o dia já está a clarear... olha...

e o rapaz olha

deixar-te-ei todos estes amanhaceres

pensa a mulher enquanto diz

repara nas cores do céu...

e o rapaz levanta os olhos da folha onde ensina a mulher a desenhar e olha toda aquela luminosidade de um laranja calmo